A psicóloga e psicanalista Kátia Bizzarro é graduada na Faculdade de Psicologia da PUC-SP, e continua em constante estudo da teoria psicanalítica através de institutos de formação em Psicanálise Lacaniana, palestras, e grupos de estudo. Atende no Bairro do Paraíso em São Paulo - SP desde 2008, e agora, também virtualmente. Além de Psicoterapia, oferece Supervisão de atendimentos psicanalíticos na abordagem Lacaniana.
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Neurociências, Psicanálise e Corpo.
Freud foi um cientista que colaborou nos primórdios da Biologia da memória: as primeiras pesquisas científicas sobre memória têm sua autoria, mas não tem tido o devido crédito. Escrevo à luz de uma entrevista publicada recentemente na Folha, em que um neurocientista afirmava que a Psicanálise, do ponto de vista dele, seria um mero exercício estético, e não um tratamento. Desde o começo a Psicanálise é um tratamento que procura produzir teorias e desenvolve seu método próprio, apesar de ainda hoje ser negada, talvez pelos mesmos motivos que criara resistências no início do Século XIX.
A Psicanálise tem uma relação de "extimidade" com as ciências. Extimidade (íntimo e exterior) é um neologismo que pode significar estar no interior e no exterior de algo, simultâneamente, assim como a banda de Moëbius, figura fascinantemente ilustrada por Escher, artista plástico, que pode ser vista na capa do “Seminário X” de Lacan, demostra: o que está dentro está fora.
A Psicanálise desde o seu início (por volta de 1890) utilizou-se do campo semântico de outras ciências - a exemplo de: sublimação e transferência, que são termos importados da física - para descrever seu método. Freud queria compartilhar a descoberta do inconsciente com os seus contemporâneos, e precisava utilizar de uma linguagem comum às ciências que lhe eram contemporâneas para ser compreendido.
65 anos mais tarde, Lacan dedicou uma série de seminários que estão concentrados no livro "Seminário XVI - De um Outro ao outro" para formalizar a Psicanálise utilizando-se da Lógica, e da Linguística. Esta última, apesar de não existir como ciência na época de Freud, já era notada por ele no funcionamento do inconsciente, e isso pode ser localizado bibliograficamente em "A interpretação dos sonhos".
No título deste Seminário lacaniano, o Outro em maiúsculo refere-se a um "lugar" estrutural - estrutural como a Antropologia e a Linguística - que supostamente conteria a verdade. "De um Outro ao outro", muito resumidamente, pode significar que não há discurso totalitário, que contenha toda a verdade. Na página 24 do Seminário XVI, Lacan afirma que o título pode significar de um Outro ao a:
“A verdade assim emitida fica presa e suspensa entre os dois registros cujos limites indiquei no título de meu seminário deste ano, o do Outro e o do pequeno a”.
a faz referência ao oco corporal cuja pulsão é proveniente procurando fazer, fora do corpo, um circuito de satisfação num objeto, êxtimo. Voltamos aqui à "extimidade". A ”extimidade” da Psicanálise consiste nela ser uma ciência, sim, mas uma ciência peculiar por saber que há "um furo" em seu saber, pois ao afirmar que a verdade encontra-se imanente, entre uma coisa e outra, afirma que não há discurso totalitário, ao mesmo tempo afirma que a Psicanálise não pretende ser um discurso totalitário, já que a verdade não pode ser dita toda. A consequência que podemos depreender disso é que não há ciência que possa representar a hegemonia do saber. Lacan recorreu ao teorema do matemático Gödel, que demonstrara que uma teoria pode ser incompleta e consistente, ou completa e inconsistente, mas não poderá ser simultaneamente completa e consistente.
O Corpo da Psicanálise
“E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.”
Fernando Pessoa.
Para entender melhor a peculiaridade da Psicanálise entre as ciências, vamos à história: consultemos Freud, Lacan, Foucault.
Sigmund Freud (1856 - 1939), médico de origem judaica, nascido em Príbor, hoje República Tcheca (Europa Central), viveu a maior parte de sua vida em Viena (79 anos), e no fim da vida exilou-se no em Londres com parte da sua família para sobreviver à perseguição nazista, onde permaneceu até a sua morte. Em meados do Século XVIII, foi trabalhar com Jean-Martin Charcot (1825-1893) no Hospital Salpêtrière, em Paris, onde tudo começou.
Trabalhando com Charcot, Freud interessou-se particularmente pelo tratamento das paralisias corporais que não tinham uma razão biológica. Ao descobrir que há algo no humano que afeta o corpo e independe da razão, e além disso não tem uma relação direta com causas físicas, o criador da Psicanálise deparou-se com aquilo que mais tarde nomeou como 'inconsciente', e intrigou-se a ponto de criar, através de muitas pesquisas empíricas e do seu conhecimento acerca dos estudos embrionários da neurologia: a Psicanálise.
Freud não inventou o inconsciente, ELE DESCOBRIU O INCONSCIENTE. Documentou a evidência do inconsciente em “Psicopatologia da vida cotidiana”. Nesta referência bibliográfica já encontramos a noção de fala como ato. No ato falho agimos de modo contrário ao que esperamos: Querendo falar uma coisa, dizemos outra. Quem fala? O que fala em nós? Freud interpelava os interlocutores, indagava sobre a relação do inconsciente com acontecimentos cotidianos, demonstrara que somos divididos subjetivamente. Algumas situações nos escapam à razão, falham em relação à comunicação, ou falham em relação ao seu objetivo, mas certamente têm uma lógica e "eficácia" inconsciente.
É disso que cuidamos na clínica psicanalítica: nos ocupamos de descobrir a lógica inconsciente que corresponde ao desejo, mas nem sempre à vontade própria. Bem mais tarde, no Sem. XVI, Lacan afirma na página 67:
“Livre (associação) não quer dizer outra coisa senão mandando embora o sujeito...”; “(...) a verdade não é dita por um sujeito, mas suportada.”; Ou ainda mais ousadamente: “Existe o sofrimento que é um fato, ou seja, que encerra um dizer. É por essa ambiguidade que se refuta que ele seja inultrapassável em sua manifestação. O sofrimento quer ser sintoma, o que equivale a dizer: verdade”.
No livro "O nascimento da clínica", Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês, escreveu acerca da diferença entre a clínica clássica e a clínica psicanalítica.
Foucault estudou a modificação da clínica clássica: do Séc. XVIII, contexto em que o médico era aquele que olhava, até a clínica psicanalítica, Séc. XIX, quando o médico passou a ser também aquele que escuta, criando uma aliança entre o ver e o dizer como fonte da clareza e do desvelamento das afecções psíquicas.
Esta mudança de paradigma faz do paciente um sujeito ativo no seu tratamento, pois desloca o saber sobre a terapêutica: de quem trata para quem é tratado. Podemos localizá-la no livro: "A interpretação dos sonhos", de Freud. Neste livro, o pai da Psicanálise discorre sobre como os sonhos eram analisados na antiguidade sem necessariamente tratar-se de uma análise científica. Naquele contexto, sonhos eram considerados "premonições". Ainda hoje encontramos catálogos com elementos de sonhos em forma de verbete, ao lado do que supostamente significariam.
Com o paradigma psicanalítico proposto por Freud, o que consideramos na análise de um sonho é o texto do sonho, o modo que ele é contado pelo paciente. Numa análise não trabalhamos somente com relatos de sonhos, mas trabalhamos com as palavras dos pacientes: esquecimentos, lapsos de linguagem, ditos cômicos, atos falhos - num contexto de análise funcionam como material a ser trabalhado psicanaliticamente. A verdade encontrando-se novamente, imanente, entre uma coisa e outra.
Os diagnósticos médicos, por exemplo, fazem parte da clínica clássica, são conservados em latim, pois latim é uma "língua morta", e com isso não há dimensão subjetiva no significado de uma doença psicossomática para quem está doente: uma "língua morta" mantém o estado entre o significante (palavra) e o significado. Consequentemente não há uma escuta psicanalítica possível na clínica médica clássica do que uma doença pode significar para quem está doente, portanto não há espaço para a interpretação das doenças psicossomáticas (por exemplo: gastrite por causa emocional, e não bacteriana, nem por lesão anatômica), há no máximo um diagnóstico e uma terapêutica medicamentosa.
Para que uma prática seja considerada clínica, de um ponto de vista clássico, ela tem que atender a quatro elementos:
-Semiologia - Campo semântico pertencente a um sistema de conhecimento, por exemplo, o campo semântico da psicanálise inclui conceitos como: inconsciente, repressão, negação...
-Diagnóstica - Reconhecimento acerca das características de um quadro clínico;
-Terapêutica - Na psicanálise, por exemplo, a direção de um tratamento e não de um sujeito;
-Etiologia: o estudo das causas.
Por exemplo, a astrologia não é uma prática clínica, pois não há nela uma terapêutica.
Diferentemente da clínica clássica, a Psicanálise é a clínica da singularidade.
A psicanálise abre espaço para uma nova interpretação: a palavra gastrite, referente ao exemplo acima, pode ter um significado que pode ser desvelado, escutando o que um paciente tem a dizer sobre isso, e pode ter outro significado para outro paciente. Não dá para generalizar que todas as gastrites são bacterianas, e tão pouco que todas as gastrites "nervosas" são causadas por estresse: é preciso escutar cada sujeito. O que muda neste paradigma é que temos um sujeito que pode falar sobre o que está sentindo através do eu do paciente, mas para isso é preciso que haja um analista, para que a verdade se dê, entre uma coisa e outra.
Se Freud foi o pai da Psicanálise, o psicanalista parisiense contemporâneo Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981), tratou de revisar a obra de Freud, e fazer as analogias necessárias para que a Psicanálise pudesse ser transmitida, fiel ao que ela se propõe: o tratamento por meio das palavras do próprio paciente. Lacan evidenciou ainda mais a descoberta de Freud: de que há um descentramento no humano. Na psicanálise o sujeito é quem dá o significado a partir do seu discurso, e o sujeito não coincide com o eu do paciente, o sujeito é sujeito do inconsciente. A clínica psicanalítica cria condições para escutarmos o discurso do inconsciente, que acontece enquanto o paciente fala. Fala e discurso não são sinônimos para a Psicanálise.
O significado que um paciente dá para o seu mal estar é singular, e paradoxalmente, muda ao longo da análise: a representação, ou seja, o significado atribuído a uma determinada experiência, muda à medida que o paciente conta o acontecido.
A clínica psicanalítica cuida do significado particular que existe num diagnóstico universal: A Psicanálise é a clínica da subjetividade.
Para finalizar, “Procura da poesia”, um conselho de Drummond que se aplica ao nosso fazer:
“Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.”.
Kátia Bizzarro.
Psicóloga graduada pela PUC-SP, em constante formação em Psicanálise lacaniana.